sábado, julho 02, 2005

O homem que observava o horizonte


O vigia deste navio pirata era uma figura estranha: um norueguês que fugiu do seu país. Magro como um palito, pele avermelhada, roupas estranhamente em ordem e não usava adereços de piratas.

Ficava, como em todo navio, no alto do mastro, numa pequena plataforma que mais parecia uma gaiola. O alto do mastro é o lugar que mais balança no navio inteiro e também é o lugar mais solitário. Seu posto é de uma responsabilidade enorme: deve avisar sobre possíveis navios desconhecidos, tempestades ou terras.

Não falava. Quando ele avistava navios inimigos ou a serem pirateados ou terras, os piratas tomavam um susto – e não se sabe se o susto era pelo aviso em si ou por ouvirem a voz do magricela “mudo”. Seu corpo esquálido e sua mudez de estátua davam medo. Em compensação, muito se falava sobre ele. Diziam no navio que ele era o único pirata que nunca havia matado alguém na vida. Contavam que uma vez um cozinheiro – um homem com o dobro do tamanho do vigia - não gostou do jeito que o norueguês o encarou e partiu para cima dele com uma faca de cozinha. Pobre cozinheiro. Não ficou com um único dente no lado de dentro da boca. Dizem que o observador magricela não o matou com as próprias mãos por pouco: ele não era um assassino. Mas quem estava presente diz que viu os olhos imensos do vigia ferverem de ódio do cozinheiro gordão. Ele pareceu engolir a raiva.

Mesmo quando estava comendo, parecia ficar olhando pelas janelas do navio procurando algo. Seus olhos esbugalhados pareciam estar sempre procurando alguma coisa na linha do horizonte. Ninguém tinha coragem de se aproximar dele. Todos tinham medo. Medo de ouvir sua voz metálica. Medo da rapidez com que ele conseguia puxar sua faca. Medo de que aqueles olhos esbugalhados tão misteriosos pudessem enxergar a alma de alguém.
Ninguém no navio notava, mas o observador mesmo sendo tão magro, era muito pesado. Ele caminhava como se tivesse um elefante nas costas. E o mais intrigante: ele não se desequilibrava com a ventania das alturas do mastro.

E numa noite dessas – uma noite com céu muito limpo, de Lua clara e muitas estrelas – o norueguês estava olhando pro infinito com sua habitual expressão de procura e tensão e seu coração estava mais pesado que o normal. A procura parecia mais tensa e difícil. Naquela noite no posto de vigilância estava um homem que nunca havia olhado para outra coisa desde criança a não ser para o horizonte. Era como se a sua cabeça nem seus olhos não pudessem mais mover-se para cima. O possível para o vigia norueguês vinha dos lados. O medo vinha em sua direção vindo da linha o horizonte.

A sensação de falta de repente pareceu ser iluminada pela Lua – tornou-se maior e mais clara. Perguntou-se o que procurava. O que procurava nesses anos todos? O que tornava essa procura tão dolorosa, tensa e improdutiva? O que era aquele estranho peso nas costas?

A angústia o levou a olhar para cima e ele pareceu perplexo com o que viu. O céu sem nuvens revelou o salpicado de pequenas luzes. Ele percebeu o brilho da Lua. A pele seca do seu rosto seu rosto moveu-se como se estivesse rachando – a expressão tornou-se mais serena. Ele juntou pontos mais brilhantes e formou desenhos. De repente os desenhos pareceram ter vida. Ele viu um desenho que parecia uma maçã. Viu uma silhueta de menina. A cabeça de um cachorro. Viu uma casa pequena.

A estranha sensação da saudade lhe surgiu. Lembrou do que viveu quando criança. Lembrou de correr num imenso e verdejante gramado. Lembrou que a maçã que viu no nas estrelas era doce. Lembrou que a silhueta nas estrelas era de uma menina loira e com sardas no rosto que corria no gramado. Aquele cão pastor tangia as ovelhas e daquela casa saiu um homem forte que o chamou para almoçar - sim, um dia ele não foi um homem que procura, mas uma criança procurada.

A última forma que percebeu foi a de um cavalo. Lembrou do dia em que brincava no gramado e viu surgir na linha do horizonte um grupo de homens a cavalo num seguro e rápido galope vindo rumo à sua casa. Ele demorou a reconhecê-los. Quando percebeu que eram homens do rei que cobravam impostos, ficou paralisado de tanto medo. Um cavalo vinha em sua direção e durante três segundos ele pôde olhar nos olhos do cavalo e através deles pôde ver o seu espírito. Pensou em avisar sua família, mas já era tarde: o cavalo o atropelou. O que se seguiu foi a morte do seu pai, mãe, avó e irmã pelos homens e ele só sobreviveu por fingir estar morto.
Sua vida seguiu como um homem que procura algo amedrontador no horizonte e nos olhos dos outros. Tornou-se um homem que até hoje carrega a vida da família nas costas. Tornou-se um homem que não olha para o que está perto – apenas para o que está vindo da linha do horizonte.