terça-feira, agosto 08, 2006

Eu sentia medo de altura. Eu tinha medo de bater minhas asas. Eu tinha medo de tirar meus pés do chão. Medo de não voltar mais, sabe? Eu tinha medo de acabar a gasolina, de quebrar o manche, de um urubu bater em mim, de perder o senso de direção, de ter uma cãibra ou de não poder mais me comunicar com quem estava na terra. Mas - por alguma razão - sentir tudo isso nunca me fez perder a vontade de ir respirar um ar mais puro. Senti todos esses medos até o momento em que fui atencioso o bastante para me certificar de que nada disso poderia acontecer. Conferida toda a lista de possíveis falhas, vi que tudo estava em ótimo estado.

E o medo continuava lá...
E num determinado momento eu cheguei à conclusão de que o medo que eu sentia era por outras razões. Eu acho que talvez tivesse medo de ficar só. Será que era isso? Mas eu nunca fui um exemplo de sociabilidade, nunca tive muitos amigos. Mas quando eu parei pra pensar quais as minhas amizades realmente significativas naquela época percebi que a lista não formava nem um time de basquete.
Pensei depois que mesmo não tendo pessoas que me segurassem aqui em terra firme cheguei à conclusão de que o meu medo era apenas não mais conseguir me comunicar com as elas. Mas depois de refletir um pouquinho, me convenci de que nunca havia conseguido me comunicar com clareza com alguém no mundo.
Pois eu comecei a me sentir numa situação desconfortável: quanto mais eliminava possibilidades, mais me sentia caminhando rumo a um lugar de gelo muito fino.
Certo, uma vez que comunicação nunca foi meu forte, achei que tinha muito medo de voar sozinho. Pronto, fiquei aliviado com isso. Tanto que até fui fazer uma lista das pessoas de quem eu costumava estar pertinho naquela época. E essa lista ficou em branco.
Agora deu bode! Eu era só? Eu era só. E que não pensem que isso me fazia mal. Não foi um lamento – foi só uma constatação. Então, tá! Agora eu vou voar! Que nada! Nova frustração: não consegui nem dar um pulinho.

E resolvi dar um tempo nessa história de vôo. Tentei por mais alguns anos ficar aqui na terrinha firme. E lentamente pude ver a minha vida azedar. Lentamente pude ver o quanto me ia me tornando incapaz de sentir os cheiros. Os gostos iam ficando cada vez mais iguais. E todas as texturas iam ficando parecidas com a de uma lousa. E todas as cores iam ficando num tom cinzento – embora às vezes eu pudesse ver um marrom ou um amarelo. Meu corpo foi ficando pesado e minha pele foi ficando áspera. Cheguei ao ponto em que senti que se ficasse cego, surdo ou mudo, talvez nem perceberia.
E não segurei mais a onda: pensei mais uma vez na possibilidade de voar bem alto, onde talvez o ar fosse mais puro e que, talvez lá de cima, a terra tivesse cor de novo.
Resolvi olhar para as possibilidades que tinha eliminado e pensei cuidadosamente sobre todas elas. Nada tinha mudado muito. Olhei pro alto e bati as asas. Não subi mais que meio metro e me deu vontade de voltar. Percebi que tinha medo de causar estranheza nas pessoas que me vissem voando. Isso era possível. Mas aí eu pensei em todas as coisas que eu fazia que pareciam ser “normais” para os outros. Percebi que quase tudo era considerado por todo mundo como doidice, burrice ou falta do que fazer. Então não havia o que temer.
Aí eu fiquei cheio de energia e tentei voar de novo. Nada. Fiquei com um sentimento estranho de que eu talvez estivesse indo pra um lugar bom e que todo mundo que ficaria aqui não ia curtir o que eu talvez fosse curtir. Senti uma culpa por isso: eu estava me libertando enquanto os outros ficavam presos na terra.
Mas eu parei por dois minutos – ou dois anos – e vi que ninguém tinha responsabilidade por eu estar na terra e que eu não tinha nem um tiquinho assim de “culpa” se outras pessoas talvez não quisessem voar. Vi que não havia nenhuma algema em seus pulsos, nenhuma arma apontada para suas cabeças e nem uma bigorna pendurada nos seus pescoços. Só que aí eu percebi que tinha que me responsabilizar por mim – seria um vôo solitário. Mas entre caminhar entre “iguais” e ser alguém único nas alturas eu preferia a segunda opção.
Quero recapitular. Esses pensamentos até aqui eliminavam a existência de igualdade, de liberdade e de fraternidade. Eu vi que essa humanidade que querem construir não dava conta do que eu sentia. Esse “humanismo” quer pessoas fracas. Quer pessoas iguais. Quer pessoas que andam de cabeça baixa e sintam dor. Que sintam culpa. Que carreguem peso que não é delas. Eu vi que esse “humanismo” quer pessoas que não voem.
Eu deixei de acreditar em humanidade. E quando eu matei a “humanidade”, o “humanismo”, a igualdade, a liberdade e a fraternidade, senti toda a força que acreditava que podia ter. Senti o corpo leve. Tirei das minhas costas um peso que eu percebi que não era meu. Senti o cheiro, o gosto, a textura, a cor de toda uma vida que era bandida em mim. Vi que havia algo que em mim que era foragido de mim mesmo, como se eu carregasse um clandestino em mim.
Bati asas e voei. Voei alto. Voei para além do céu. Vi que o que havia era um desejo em mim de algo que estava além do que estava na terra, mas que estava nas alturas. Simplesmente resolvi que podia surfar a onda de vento. E uma vez lá em cima, achei que podia ficar lá, pairando, paradinho. E já que eu estava pairando, planando, paradinho, achei que talvez devesse olhar pra baixo de vez em quando. E sim, há tantas coisas belas lá embaixo. Há tanta cor, há tanta vida querendo sair de onde está, há tantas pessoas maravilhosas, tantos gostos, tantos momentos, tantas pessoas carregando seus clandestinos, tantas pessoas no anseio de viver o lado bandido das suas vidas e com medo. Medo do que é escondido, medo que é seu mas que acha feio, medo de altura, medo de desejar, medo do que é breve, do que passa; medo da bandidagem. Medo de ser assaltada quando dobrar a esquina escura da existência – como se elas próprias não pudessem assaltar uma possibilidade, de permitir que o bandido que elas carregam corra atrás do que eles dois querem: algo delas próprias, uma vontade, um desejo profundo, um risco, uma ousadia, essa força descomunal.
E, sim, tudo isso de que eles têm medo é justamente o que me faz forte hoje. Tudo que eu quero é o risco de dobrar essa esquina. Eu desejo dobrar essa esquina como se fosse dobrar outra daqui a dois metros. Eu quero os caminhos iluminados tanto quanto os escuros. Quero voar na tempestade tanto quanto voar acima das nuvens. E a cada bater das minhas asas eu quero que tudo volte e que se acabe novamente.

5 Comments:

Anonymous Anônimo said...

pirata... clap, clap, clap.

7:52 PM  
Anonymous Anônimo said...

Às vezes eu não acredito que tu existe.
Tu me fez chorar. De leve.
Tem jeito pra mim, sim. Tô chegando lá.
Te adoro! Bj.

6:15 AM  
Anonymous Anônimo said...

Adorei o texto, Rafa!!
Bjs e voe cada vez mais alto...

10:29 AM  
Blogger Isabel. said...

Achei teu blog no do Assolan.
E li teu texto de uma ponta a outra, assim, em voz alta, pra sentir todas as palavras.
Fez efeito. Fez rir e chorar e ficar apreensiva e compreender e querer mais.

Aí eu li outro texto. E outro. e outro.....

E virei frequentadora assídua daqui. A partir de hoje.
=)
posso te add no meu blog?

7:17 PM  
Anonymous Anônimo said...

é..."heróis sao pessoas que fazem o que deve ser feito,e sofrem as consequencias"...gostaria dessa coragem..

6:57 AM  

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